O
INTERDISCURSO NA LITERATURA INFANTIL
por Simone Strelciunas Goh
“Tenho um livro sobre água e
meninos.
Gostei mais de um menino
Que carregava água na
peneira
A mãe disse que carregar
água na peneira
Era o mesmo que roubar um
vento
E sair correndo com ele para
mostrar aos irmãos.” (MANOEL DE BARROS)
“As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples, porque as
crianças, sendo pequenas, sabem poucas palavras e não gostam de usá-las
complicadas.”(JOSÉ SARAMAGO)
Discutir sobre a importância
da palavra escrita, sua produção e leitura, sempre me impulsionou, falar à
criança sobre a perenidade da escrita e sobre o ato de ler é algo desafiador.
Certa vez, meu orientador. Prof. Hudinilson Urbano indagou-me se eu conhecia o
poema O menino que carregava água na
peneira de Manoel da Barros , respondi que Manoel de Barros sim, mas não
havia lido o poema em questão. Corri para a internet e o encontrei :
“Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito porque carregava
água na peneira com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar
água na peneira.”
A conversa trouxe-me uma
inquietação, afinal todos os escritores carregam água na peneira, não é mesmo?
Revendo minhas memórias literárias, lembrei-me do escritor-maior, José
Saramago, de seu livro A maior flor do
mundo e o quanto o seu enunciado explicita o papel do escritor em busca de
sua máxima: despertar a atenção do leitor, especificamente do leitor infantil.
Manoel
de Barros e Saramago em um diálogo atemporal, o primeiro com a falsa fugacidade
das palavras e este que, para preservar sua face de escritor, apresenta um enunciado
repleto de desculpas, como se realmente estivesse carregando água na peneira.
O
interdiscurso
O desafio aqui é analisarmos como ocorrem os
interdiscursos entre O menino que
carregava água na peneira, um poema de Manoel de Barros, semelhante aos
cordeis e A maior flor do mundo,
prosa que explicita por meio de marcas de enunciação o trabalho do escritor.
Há na
sociedade um número infinito de discursos que se encontram em processos de
complementação ou anulação, na apropriação um do outro vão compondo outros
significados e nós estamos inseridos nesse universo das palavras. Esse modus operantis denota a formação
ideológica, contida nas formações discursivas, que por sua vez imprimem
relações de antagonismo, dominação ou aliança.
Entenderemos
ideologia pelo viés de Pêcheux: esse conceito abarca duas formas, primeiramente
e a que nos interessa, um processo de recombinação de conceitos operatórios
para posterior rearranjo em um discurso original; a outra se envereda pelo
desenvolvimento das relações de classe.
O
menino era ligado em despropósitos
Quis
montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A
mãe reparou que o menino
Gostava
mais do vazio
Do
que do cheio.
Falava
que os vazios
São
maiores e infinitos. (MANOEL DE BARROS)
No excerto, vemos a presença de um paradoxo: “Quis montar os alicerces de uma casa sobre
orvalhos”, retoma a ideia de subjetividade que constitui o trabalho com a
palavra, o fazer poético, ratificado pelo verso “gostava mais do vazio”, indicando as possibilidades
plurissignificativas da literatura. A estrofe em si não traz a visão do novo,
em sua concepção, pois “este algo já foi falado antes em algum lugar”,
instaurando-se aqui a interdiscursividade. Ademais, ao trazer as inferências de
uma mãe sobre as preferências de seu filho, Manoel de Barros constitui essa voz
do texto em um sujeito, que traduz uma das ideologias impostas pela sociedade,
a necessidade de termos nossos atos e comportamentos validados por nossos pais,
entendendo a família como um aparelho ideológico do estado.
O
ato de compreensão de um texto está relacionado ao domínio que o sujeito tem da
linguagem, que não deve ser considerado um ato isolado ou individual, pois tal
apropriação reflete como este interpelou a questão ideológica presente. Dessa
feita, o sujeito se apropria da linguagem que reflete suas próprias concepções,
e esse jogo de ressignificação se mostra nos diversos discursos que o texto
pode apresentar. Em um diálogo teórico
com Saramago, notamos todos esses aspectos no trecho a seguir:
Quem me dera saber escrever essas
histórias, mas nunca fui capaz de aprender, e tenho pena...
A
novidade aqui não está na construção frasal, uma vez que a expressão “quem me
dera”, é muito utilizada em gêneros populares como a chamada quadra, gênero
poético popular. Observe a versão de
Mário Quintana:
Cidadezinha cheia de graça…
Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça…
Sua igrejinha de uma torre só…
Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca nem um segundo…
E fica a torre, sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!…
Eu que de longe venho perdido,
Sem pouso fixo (a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!
Lá toda a vida poder morar!
“Quem
me dera”, pode ser assim considerado um marcador enunciativo, que denota um
desejo distante. Poderíamos elencar outros exemplos do pequeno marcador, mas
esse já cumpre sua função que é a de instaurar a noção de interdiscursividade.
Realizando-se assim o interdiscurso, instaura-se a ideologia, que grosso modo,
parafraseando Pêcheux, é a forma do homem ver o mundo por meio do
entrecruzamento das imagens e representações dela e de si mesmo:
“Se eu tivesse aquelas qualidades todas
poderia contar com pormenores, uma linda história que um dia inventei.”
No
ir e vir de sua interação social, o homem se apropria dos sentidos da
palavra de forma que, “quem me dera”
pode ser vista aqui como uma expressão que justifica a confissão do escritor :
“Além de ser preciso saber escolher as
palavras, falta um certo jeito de contar, uma maneira muito certa e explicada,
uma paciência muito grande- e a mim falta-me pelo menos a paciência, do que
peço desculpa.”(SARAMAGO)
.É
nessa dinâmica que as palavras transitam de textos em textos em tempos iguais
ou distantes. A interdiscursividade com outros textos assim está representada
tanto em Saramago quanto em Manoel de Barros. No entanto, há interdiscursos
entre os dois escritores?
Saramago
não tem problema algum em antecipar ao leitor o uso de léxicos não usuais:
“Na história que eu quis escrever, mas
não escrevi, havia uma aldeia. (Agora vão começar a aparecer algumas palavras
difíceis, mas quem não souber, deve ir ver no dicionário ou perguntar ao
professor).”
No
trecho, o eu se constitui no sujeito-autor, na medida em que ele se legitima
pela negativa “Na história que eu quis escrever, mas não escrevi, havia uma
aldeia.” Ao mesmo tempo, as palavras nos revelam que o leitor almejado por
Saramago se trata de uma criança, pois é ela quem frequenta a escola e poderá
perguntar algo ao professor. Observa-se
um breve exemplo de discurso didático, legitimando o professor como conhecedor
máximo das palavras, no mesmo nível do dicionário. A escola é aqui representada
como um aparelho ideológico do estado, na figura do professor, que também seria
o responsável, implicitamente pela alfabetização daquele menino de Manoel de
Barros:
O
menino aprendeu a usar as palavras.
Viu
que podia fazer peraltagens com as palavras.
E
começou a fazer peraltagens.
A
escola se faz presente nos dois textos, os autores, assim, legitimam o papel
desse aparelho ideológico do estado.
Escrever – um universo de despropósitos
Ao
usarmos as palavras, estamos no universo dos despropósitos, como O menino que carregava água na peneira,
tais sentidos deveriam se renovar:
Foi
capaz de interromper o voo de um pássaro
Botando
ponto no final da frase.
Foi
capaz de modificar a tarde
Botando
uma chuva nela.
Da mesma forma que o menino de Manoel de
Barros constrói despropósitos apresentados por meio dos versos
metalinguísticos, Saramago traz a metalinguagem representada no discurso do seu
eu-autor, que inclusive foi magicamente ilustrado por João Caetano, mas também caminha
por esse universo dos despropósitos em uma perspectiva semântica:
“Logo
na primeira página, sai o menino pelos fundos do quintal, e, de árvore em
árvore, como um pintassilgo, desce ao rio e depois por ele abaixo naquela
vagarosa brincadeira que o tempo alto, largo e profundo da infância a todos nós
permitiu.”
O domínio linguístico não reside na reprodução
de modelos que nos são impostos, mas na construção de novos; palavras que
remetam a campos semânticos nunca dantes navegados – mensurar o tempo da
infância – alto, largo e profundo,
remete-nos a um distanciamento infinito do tempo presente, assim, não foi
necessário criar uma palavra nova, mas construir um sentido novo para aquelas
que já existem, tornamo-nos falantes e leitores, criadores de palavras dentro
de novos contextos.
De
tal modo, as palavras são vistas como fios ideológicos que vão se costurando e
se fazendo tecido, constituem-se como sociedade. A palavra é a sociedade e a
sociedade é constituída pela palavra, mas, ao mesmo tempo, essas tramas-palavras
carregam marcas ideológicas, que são o pensar e o se constituir dessa mesma
sociedade. Se as palavras são remetidas a novos contextos, produzem novas
formas de pensar e assim a palavra move a sociedade. Tal movimento pode ser
traduzido agora por Manoel de Barros:
No
escrever o menino viu
Que
era capaz de ser noviça, monge ou mendigo
Ao
mesmo tempo.
Quebrando
paradigmas, o poeta constrói a ideia de fluidez do gênero, por que não ser
noviça e monge ao mesmo tempo. Para o leitor infantil tal ideia pode passar
despercebida ou até entendida como natural, o que de fato é, mas para o leitor
adulto, totalmente mediado pelos aparelhos ideológicos e supostas ideologias
que permeiam nosso cotidiano, pode ser visto com estranhamento, mas essa é a
real função da literatura: causar estranhamento para que a reflexão quebre
paradigmas.
O
cotidiano de cada indivíduo está inserido nesse universo de discursos e é a
partir dessa materialidade discursiva que temos a subjetividade. Ela nada mais
é que o resultado da polifonia, das muitas vozes sociais que cada
indivíduo recebe e tem condição de reproduzir e –ou reelaborar.
Tomamos
a liberdade e acrescentamos às palavras de Manoel Barros o verbo ler: “... ao ler e ao escrever o menino viu que
era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.” Produzimos palavras ao escrevermos, mas
também ao lermos, uma vez que a palavra do outro, do escritor, vai ao encontro
do nosso mundo pessoal, penetra no nosso infinito particular e assim damos
sentido ao que Maingueneau conceitua de texto: um todo inacabado, que se
reconstrói e se ressignifica a cada leitura. A leitura é uma questão linguística,
pedagógica e social e tais dimensões não devem ser
absolutizadas, mas representar as possibilidades infinitas construídas a partir
de cada uma. Devemos descartar o pedagogismo
que encerra o processo leitor dentro de uma cena única. Tal ideologia aponta
para uma única perspectiva, que afunila e direciona o pensar do indivíduo, que
deixa de se constituir como homem plural.
Se o
indivíduo tiver acesso ao conhecimento legítimo, ele se tornará crítico e
criador de seu próprio mundo das palavras, dotado de ideologias escolhidas por
ele e não ao contrário, um ser manipulado por ideologias distantes de seu eu.
Embora
a mãe dissesse que o menino carregava água na peneira, Manoel de Barros prova
que essa imagem simboliza o oposto àquilo que o próprio menino realiza:
O menino fazia
prodígios.
Até fez uma pedra dar
flor...
(....)
Você vai encher os
vazios com as suas
Peraltagens
Cabe-nos aqui ressaltar, que além da
interdiscursividade com outros textos, A
maior flor do mundo de Saramago, legitima o enunciado de O menino que carregava água na peneira
de Manoel de Barros, isso, pois o interdiscurso se dá tanto pela questão
metalinguística, quanto pelo diálogo entre as unidades discursivas, que nesse
caso estabelecem uma aliança. Para Saramago é ímpar que escrever é “carregar
água na peneira”, ação difícil, ou quase impossível, especialmente em se
tratando de literatura infantil:
“Tenho
muita pena de não saber escrever histórias para crianças”
As palavras podem ser
fugidias e se esvaírem como água na peneira, para muitos, mas elas criam
mundos, constroem sociedades, tornam o indivíduo um ser na extensão plena e instituem
relações de aliança quando se transformam em textos que divagam nesse universo.
KLEIMAN, Angela . Texto & leitor. Aspectos cognitivos da leitura. 7ª.edição. Campinas: São Paulo, Pontes, 2000.
SARAMAGO, José.A maior flor do mundo. 1a.ed.São Paulo: Cia. das Letrinhas, 2001.Preservação de face