quinta-feira, 18 de maio de 2023

Artigo publicado na Revista Língua Portuguesa

 

O INTERDISCURSO NA LITERATURA INFANTIL

por Simone Strelciunas Goh

“Tenho um livro sobre água e meninos.

Gostei mais de um menino

Que carregava água na peneira

A mãe disse que carregar água na peneira

Era o mesmo que roubar um vento

E sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.” (MANOEL DE BARROS )

 As histórias para crianças devem ser escritas  com palavras muito simples, porque as crianças, sendo pequenas, sabem poucas palavras e não gostam de usá-las complicadas.”(JOSÉ SARAMAGO)

 Discutir sobre a importância da palavra escrita, sua produção e leitura, sempre me impulsionou, falar à criança sobre a perenidade da escrita e sobre o ato de ler é algo desafiador. Certa vez, meu orientador. Prof. Hudinilson Urbano indagou-me se eu conhecia o poema O menino que carregava água na peneira de Manoel da Barros , respondi que Manoel de Barros sim, mas não havia lido o poema em questão. Corri para a internet e o encontrei :

Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito porque carregava água na peneira com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo que carregar água na peneira.”

A conversa trouxe-me uma inquietação, afinal todos os escritores carregam água na peneira, não é mesmo? Revendo minhas memórias literárias, lembrei-me do escritor-maior, José Saramago, de seu livro A maior flor do mundo e o quanto o seu enunciado explicita o papel do escritor em busca de sua máxima: despertar a atenção do leitor, especificamente do leitor infantil.

 Manoel de Barros e Saramago em um diálogo atemporal, o primeiro com a falsa fugacidade das palavras e este que, para preservar sua face de escritor, apresenta um enunciado repleto de desculpas, como se realmente estivesse carregando água na peneira.

O interdiscurso

O desafio aqui é analisarmos como ocorrem os interdiscursos entre O menino que carregava água na peneira, um poema de Manoel de Barros, semelhante aos cordeis e A maior flor do mundo, prosa que explicita por meio de marcas de enunciação o trabalho do escritor.

na sociedade um número infinito de discursos que se encontram em processos de complementação ou anulação, na apropriação um do outro vão compondo outros significados e nós estamos inseridos nesse universo das palavras. Esse modus operantis denota a formação ideológica, contida nas formações discursivas, que por sua vez imprimem relações de antagonismo, dominação ou aliança.

Entenderemos ideologia pelo viés de Pêcheux: esse conceito abarca duas formas, primeiramente e a que nos interessa, um processo de recombinação de conceitos operatórios para posterior rearranjo em um discurso original; a outra se envereda pelo desenvolvimento das relações de classe. 

O menino era ligado em despropósitos

Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino

Gostava mais do vazio

Do que do cheio.

Falava que os vazios

São maiores e infinitos. (MANOEL DE BARROS)

 

No excerto, vemos a presença de um paradoxo: “Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos”, retoma a ideia de subjetividade que constitui o trabalho com a palavra, o fazer poético, ratificado pelo verso “gostava mais do vazio”, indicando as possibilidades plurissignificativas da literatura. A estrofe em si não traz a visão do novo, em sua concepção, pois “este algo já foi falado antes em algum lugar”, instaurando-se aqui a interdiscursividade. Ademais, ao trazer as inferências de uma mãe sobre as preferências de seu filho, Manoel de Barros constitui essa voz do texto em um sujeito, que traduz uma das ideologias impostas pela sociedade, a necessidade de termos nossos atos e comportamentos validados por nossos pais, entendendo a família como um aparelho ideológico do estado .

O ato de compreensão de um texto está relacionado ao domínio que o sujeito tem da linguagem, que não deve ser considerado um ato isolado ou individual, pois tal apropriação reflete como este interpelou a questão ideológica presente. Dessa feita, o sujeito se apropria da linguagem que reflete suas próprias concepções, e esse jogo de ressignificação se mostra nos diversos discursos que o texto pode apresentar.  Em um diálogo teórico com Saramago, notamos todos esses aspectos no trecho a seguir:

Quem me dera saber escrever essas histórias, mas nunca fui capaz de aprender, e tenho pena...

A novidade aqui não está na construção frasal, uma vez que a expressão “quem me dera”, é muito utilizada em gêneros populares como a chamada quadra, gênero poético popular.  Observe a versão de Mário Quintana:

Cidadezinha cheia de graça…


Tão pequenina que até causa dó!
Com seus burricos a pastar na praça…
Sua igrejinha de uma torre só…

Nuvens que venham, nuvens e asas,
Não param nunca nem um segundo…
E fica a torre, sobre as velhas casas,
Fica cismando como é vasto o mundo!…

Eu que de longe venho perdido,
Sem pouso fixo (a triste sina!)
Ah, quem me dera ter lá nascido!

Lá toda a vida poder morar!

 “Quem me dera”, pode ser assim considerado um marcador enunciativo, que denota um desejo distante. Poderíamos elencar outros exemplos do pequeno marcador, mas esse já cumpre sua função que é a de instaurar a noção de interdiscursividade. Realizando-se assim o interdiscurso, instaura-se a ideologia, que grosso modo, parafraseando Pêcheux, é a forma do homem ver o mundo por meio do entrecruzamento das imagens e representações dela e de si mesmo:

Se eu tivesse aquelas qualidades todas poderia contar com pormenores, uma linda história que um dia inventei.”

No ir e vir de sua interação social, o homem se apropria dos sentidos da palavra  de forma que, “quem me dera” pode ser vista aqui como uma expressão que justifica a confissão do escritor :

“Além de ser preciso saber escolher as palavras, falta um certo jeito de contar, uma maneira muito certa e explicada, uma paciência muito grande- e a mim falta-me pelo menos a paciência, do que peço desculpa.”(SARAMAGO)

.É nessa dinâmica que as palavras transitam de textos em textos em tempos iguais ou distantes. A interdiscursividade com outros textos assim está representada tanto em Saramago quanto em Manoel de Barros. No entanto, há interdiscursos entre os dois escritores?

Saramago não tem problema algum em antecipar ao leitor o uso de léxicos não usuais:

“Na história que eu quis escrever, mas não escrevi, havia uma aldeia. (Agora vão começar a aparecer algumas palavras difíceis, mas quem não souber, deve ir ver no dicionário ou perguntar ao professor).”

No trecho, o eu se constitui no sujeito-autor, na medida em que ele se legitima pela negativa “Na história que eu quis escrever, mas não escrevi, havia uma aldeia.” Ao mesmo tempo, as palavras nos revelam que o leitor almejado por Saramago se trata de uma criança, pois é ela quem frequenta a escola e poderá perguntar algo ao professor.  Observa-se um breve exemplo de discurso didático, legitimando o professor como conhecedor máximo das palavras, no mesmo nível do dicionário. A escola é aqui representada como um aparelho ideológico do estado, na figura do professor, que também seria o responsável, implicitamente pela alfabetização daquele menino de Manoel de Barros:

O menino aprendeu a usar as palavras.

Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.

E começou a fazer peraltagens.

A escola se faz presente nos dois textos, os autores, assim, legitimam o papel desse aparelho ideológico do estado.

Escrever – um universo de despropósitos

Ao usarmos as palavras, estamos no universo dos despropósitos, como O menino que carregava água na peneira, tais sentidos deveriam se renovar:

Foi capaz de interromper o voo de um pássaro

Botando ponto no final da frase.

Foi capaz de modificar a tarde

Botando uma chuva nela.

 Da mesma forma que o menino de Manoel de Barros constrói despropósitos apresentados por meio dos versos metalinguísticos, Saramago traz a metalinguagem representada no discurso do seu eu-autor, que inclusive foi magicamente ilustrado  por João Caetano, mas também caminha por esse universo dos despropósitos em uma perspectiva semântica:

“Logo na primeira página, sai o menino pelos fundos do quintal, e, de árvore em árvore, como um pintassilgo, desce ao rio e depois por ele abaixo naquela vagarosa brincadeira que o tempo alto, largo e profundo da infância a todos nós permitiu.”

 O domínio linguístico não reside na reprodução de modelos que nos são impostos, mas na construção de novos; palavras que remetam a campos semânticos nunca dantes navegados – mensurar o tempo da infância – alto, largo e profundo, remete-nos a um distanciamento infinito do tempo presente, assim, não foi necessário criar uma palavra nova, mas construir um sentido novo para aquelas que já existem, tornamo-nos falantes e leitores, criadores de palavras dentro de novos contextos.

De tal modo, as palavras são vistas como fios ideológicos que vão se costurando e se fazendo tecido, constituem-se como sociedade. A palavra é a sociedade e a sociedade é constituída pela palavra, mas, ao mesmo tempo, essas tramas-palavras carregam marcas ideológicas, que são o pensar e o se constituir dessa mesma sociedade. Se as palavras são remetidas a novos contextos, produzem novas formas de pensar e assim a palavra move a sociedade. Tal movimento pode ser traduzido agora por Manoel de Barros:

No escrever o menino viu

Que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo

Ao mesmo tempo.

Quebrando paradigmas, o poeta constrói a ideia de fluidez do gênero, por que não ser noviça e monge ao mesmo tempo. Para o leitor infantil tal ideia pode passar despercebida ou até entendida como natural, o que de fato é, mas para o leitor adulto, totalmente mediado pelos aparelhos ideológicos e supostas ideologias que permeiam nosso cotidiano, pode ser visto com estranhamento, mas essa é a real função da literatura: causar estranhamento para que a reflexão quebre paradigmas.

O cotidiano de cada indivíduo está inserido nesse universo de discursos e é a partir dessa materialidade discursiva que temos a subjetividade. Ela nada mais é que o resultado da polifonia , das muitas vozes sociais que cada indivíduo recebe e tem condição de reproduzir e –ou reelaborar.

Tomamos a liberdade e acrescentamos às palavras de Manoel Barros o verbo ler: “... ao ler e ao escrever o menino viu que era capaz de ser noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.”  Produzimos palavras ao escrevermos, mas também ao lermos, uma vez que a palavra do outro, do escritor, vai ao encontro do nosso mundo pessoal, penetra no nosso infinito particular e assim damos sentido ao que Maingueneau conceitua de texto: um todo inacabado, que se reconstrói e se ressignifica a cada leitura. A leitura é uma questão linguística, pedagógica e social e tais dimensões não devem ser absolutizadas, mas representar as possibilidades infinitas construídas a partir de cada uma. Devemos descartar o pedagogismo que encerra o processo leitor dentro de uma cena única. Tal ideologia aponta para uma única perspectiva, que afunila e direciona o pensar do indivíduo, que deixa de se constituir como homem plural.

Se o indivíduo tiver acesso ao conhecimento legítimo, ele se tornará crítico e criador de seu próprio mundo das palavras, dotado de ideologias escolhidas por ele e não ao contrário, um ser manipulado por ideologias distantes de seu eu.

Embora a mãe dissesse que o menino carregava água na peneira, Manoel de Barros prova que essa imagem simboliza o oposto àquilo que o próprio menino realiza:

O menino fazia prodígios.

Até fez uma pedra dar flor...

(....)

Você vai encher os vazios com as suas

Peraltagens

 

Cabe-nos aqui ressaltar, que além da interdiscursividade com outros textos, A maior flor do mundo de Saramago, legitima o enunciado de O menino que carregava água na peneira de Manoel de Barros, isso, pois o interdiscurso se dá tanto pela questão metalinguística, quanto pelo diálogo entre as unidades discursivas, que nesse caso estabelecem uma aliança. Para Saramago é ímpar que escrever é “carregar água na peneira”, ação difícil, ou quase impossível, especialmente em se tratando de literatura infantil:

Tenho muita pena de não saber escrever histórias para crianças”

As palavras podem ser fugidias e se esvaírem como água na peneira, para muitos, mas elas criam mundos, constroem sociedades, tornam o indivíduo um ser na extensão plena e instituem relações de aliança quando se transformam em textos que divagam nesse universo.

 

Referências :

BARROS, Manoel de. Exercícios de ser criança.2a.ed. São Paulo: Moderna, 2017.

KLEIMAN, Angela . Texto & leitor. Aspectos cognitivos da leitura. 7ª.edição. Campinas: São Paulo, Pontes, 2000.
SARAMAGO, José.A maior flor do mundo. 1a.ed.São Paulo: Cia. das Letrinhas, 2001. Preservação de face