terça-feira, 8 de junho de 2010

O gênero cartas entre escritores

O gênero cartas entre escritores
Simone S. Goh

Durante praticamente cinco anos estudei as cartas que Monteiro Lobato enviou ao também escritor Godofredo Rangel editadas na obra A Barca de Gleyre (Monteiro Lobato, 1948), mas sinceramente algo que me intrigou foi a classificação desses escritos: literários ou não? Os estudiosos que me acompanharam afirmavam que uma vez carta, textos não literários. Não há recriação uns diziam, mas afirmo que há; não recriação de tempo, espaço, mas recriação da língua, a língua das cartas entre escritores ocupa o lugar do espaço imaginário de linha atemporal, algumas construções e escolhas lexicais são personagens que entram e saem das cartas brincando de conversar.

Agora ando fazendo assim. Vou principiar lhe escrevendo esta carta nesta “hora vaga” de domingo de carnaval, que até meus domingos e meus impossíveis carnavais, agora, têm as horas “de obrigação” e as frestas delas, a que se dá o nome de “horas vagas”. Hoje fiz um mundo de não-coisas , mas foi domingo de conquista, “conquistei” a última injeção da série. Ora estas injeções que me anularam doze domingos seguidos, me deixam no mundo das não-coisas. Jejum forçado. Fico abatido bem, com dores por trás, porisso, de cama brigada e entre-sono vão, sem muito pensamento... (Manuel in Itinerários:47)

Qual o real significado de “Hoje fiz um mundo de não coisas”, escolha proveniente de um gênio literário, neologismo, o significante ganha novos significados por meio de novos agrupamentos de morfos, uau....criando um novo mundo por meio de novas linguagens, literatura, qual gênero se faz presente no trecho ?
Onde posso buscar respaldo para essas minhas afirmações tão subjetivas ? Bakhtin é claro...
Gostaria que vocês me ajudassem nesta busca, concordam que o conhecimento que temos sobre gêneros discursivos é adquirido por meio da nossa própria participação em atividades comunicativas diárias e profissionais. Ou seja, se somos escritores devemos ter pleno conhecimento e domínio sobre que tipo de gênero praticar em determinada situação (falada ou escrita), melhor falando, não há a prática de um gênero apenas, mas de um contínuo, uma fluidez, mescla entre os gêneros primário e secundário. Digo isso e exemplifico abaixo.

“Tenho um mundo de coisas por fazer, mas não posso deixar de responder imediatamente à sua carta de 16, recebida neste momento. Quando um poeta de sua força me pede conselhos, fico cheio de dedos, com medo de desviá-lo para o meu caminho, quando quem tem força anda sozinho. Mas desde que tem bastante força para decidir por si as sugestões alheias, então tudo está muito bem.(Manuel in Itinerários : 80)

As palavras são de Manuel Bandeira em carta endereçada a Alphonsus de Guimaraens Filho, isso mesmo, o filho do grande poeta simbolista. Só para esclarecer, durante este nosso colóquio citarei também trechos retirados de uma obra denominada Itinerários, que apresenta cartas de Manuel Bandeira e Mário de Andrade escritas para o jovem poeta Alphonsus. O que noto é que mesmo Bandeira sendo infinitamente mais famoso que seu endereçado (haja vista que este escrevia a Bandeira para que o grande poeta lhe desse conselhos sobre seu texto), utiliza de evasivas, oscilando entre o gênero primário em que o foco é a atividade comunicativa e o secundário de organização mais complexa (Bakhtin, 2006).
Vocês percebem que quando Bandeira usa frases feitas como: “tenho um mundo de coisas pra fazer” isso é típico de uma situação informal. Essa mescla de gêneros, faz possível uma situação de comunicação, algo que Bakhtin (op.cit) já afirmava, ou seja se os gêneros não existissem a comunicação não aconteceria.

Nós usamos os gêneros como uma embalagem para a nossa fala de modo a fazer com que ela seja uma interação reconhecível às exigências da situação, de acordo com Berkenkotter e Hucki (1995), nesse processo primamos mais pela forma, aproximamo-nos do gênero secundário, se enfatizamos o conteúdo em si, voltamo-nos mais para o primário. Assim, vejam outro exemplo:

“Vou-lhe escrever um bocado loucamente sem pensar muito no assunto. Será antes lhe dar uma impressão pra você mastigar e aproveitar o que lhe parecer útil, sobre sua carta e seus versos que acabo de ler. (Mário de Andrade in Itinerários : 43)

Durante minha vida acadêmica me ensinaram que os modernistas eram revolucionários, inovaram em forma e conteúdo. O que dizer então do trecho acima, todos os pronomes nos devidos lugares e isso provindo de Mário de Andrade?
Novamente temos um trecho de uma das cartas, notem que realmente Mário coloca sua língua em uma embalagem de maneira a não desarticular seu endereçado.
Outro exemplo, caros amigos retornemos ao meu amado Monteiro Lobato:

Apontas-me, como crime, a minha mistura de ‘você’ com ‘tu’ na mesma carta e às vezes no mesmo periodo. Bem sei que a Gramatica sofre com isso, a coitadinha; mas me é muito comodo, mais lepido, mais saído – e, portanto, sebo para a coitadinha. Ás vezes o ‘tu’ entra na frase que é uma beleza, outras é no ‘você’ que está a beleza – e como sacrificar essas duas belezas só porque um Coruja, um Bento José de Oliveira, um Freire da Silva, um Epifanio e outros perobas ‘não querem’? Não fiscalizo gramaticalmente minhas frases em cartas. Lingua de cartas é lingua em mangas de camisa e pé-no-chão – como a falada. E, portanto, continuarei a misturar o tu com você como sempre fiz – e como não faz o Macuco. Juro que ele respeita essa regra da gramatica como os judeus respeitavam as vestes sagradas do Sumo Sacerdote. Logo, o dever nosso é fazer o contrario.” (sublinhado e negrito nosso) (A Barca I, 11,1904)

Mário, considerado o papa do Modernismo, seguido de Manuel Bandeira praticam uma língua que resulta numa mescla de gêneros, enquanto Lobato, purista por excelência insiste em enfatizar a ação da comunicação à forma, ou seja quer se aproximar muito mais do gênero primário.
Vimos assim que as cartas entre escritores são fábricas de conversa em que Mário de Andrade, Manuel Bandeira e Monteiro Lobato se determinam não apenas como escritores, mas como homens escritores, por meio de uma língua livre (não entendam aqui subversão à última flor do Lácio, até por que isso daria uma outra conversa: liberdade & língua ) que transita pelos gêneros discursivos e abre a possibilidade de uma nova classificação de gênero textual literário: cartas entre escritores.

Bibliografia

ANDRADE E BANDEIRA, Mário e Manuel. Itinerários - Cartas a Alphonsus de Guimaraens Filho.São Paulo : Livraria Duas Cidades, 1974.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BERKENKOTTER, C.; HUCKIN, T. Genre knowledge in disciplinary communication: cognition/culture/power. Hillsdale: Lawrence Erlbaum Associates, 1995.
GOH, Simone. Metalinguagem e Oralidade em Monteiro Lobato. Dissertação de Mestrado. FFLCH, USP, 2004.
MONTEIRO LOBATO, José Bento. A Barca de Gleyre (1º tomo). 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1948.

Palestras Maingueneau e Dino Preti


Queridos alunos e amigos, a seguir minhas considerações sobre duas palestras excelentes, a primeira proferida por D. Maingueneau, que coloca em discussão, sob a ótica da análise do discurso um texto de propaganda eleitoral, depois o prof. Dino Preti que nos abrilhantou com seus posicionamentos sobre a gíria. Curti muito e compartilho com vocês meus relatórios :


Palestra Prof. Dominic Maingueneau
Simone S. Goh


Local : Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP 28.4.2010
Tema : O discurso eleitoral – fronteiras nebulosas

Objetivo : Inserir o gênero discurso político no campo da análise do discurso e da semiótica narrativa.

Corpus : Texto de propaganda eleitoral do candidato à presidência da França , José Bové, disponível na internet (anexo)

I- Considerações sobre o gênero :

1) Os textos são singulares, de forma que o primeiro passo para a análise é entender o gênero (discurso eleitoral) e a relação com o candidato.
2) O texto analisado tem um formato padrão para todos os candidatos ( uma foto e quatro páginas de texto (livre).
3) O texto só se faz discurso quando o locutor reapresenta suas relações, para isso é necessário estabelecermos os campos semânticos : candidato/partido e partidos de direita/esquerda.
4) O discurso se apóia na memória (“ às urnas” intertextual com “às armas” citação do Hino Nacional da França . Assim podemos entender que votar em José Bové é fazer uma revolução. Ao compor dessa forma o enunciado ele faz uso da chamada enunciação anaforizante :

Em nossa sociedade circulam, quer sob a forma oral, quer sob a forma escrita um , grande número desses enunciados. Expliquemos melhor: estamos aqui nos referindo aos enunciados curtos, representados, na maior parte dos casos, por uma única frase, quando são retirados de seu contexto original ou, em outras palavras, quando são descontextualizados. Tais enunciados são normalmente atribuídos a uma fonte autorizada (que pode ser representada por um indivíduo ou por uma entidade abstrata, tal como, por exemplo, “a sabedoria popular”). Isso acontece, principalmente, no caso específico dos enunciados que compõem os provérbios. Entre esses enunciados, existem alguns que já se mostram, de modo natural, “destacados”, ou seja, são enunciados que foram assim concebidos desde sua origem. Vamos incluir nesse caso as máximas, os provérbios e as divisas, entre tantos outros. Aliás, devemos lembrar que os linguistas têm geralmente mostrado um grande interesse pelo estudo desse tipo de enunciado. Porém, existe um outro tipo de enunciado “destacado”: aqueles que foram isolados ou retirados de um determinado texto pela ação de um ou de vários agentes. Tais enunciados seriam correspondentes às citações, no sentido tradicional que a palavra carrega.

Fonte: www. abralin.org/abralin2007/resumos/maingueneau.pdf




II- Inferências sobre Bové :

1) está acima do enunciado e estabelece uma ideologia que é dele e não do partido(Socialista) o qual ele representa; o candidato se coloca como portador de uma instituição.
2) Do campo semântico – candidato : sindicalista camponês, militante altermundialista, cidadão engajado. Constrói novas realidades por meio de novas construções lexicais, o que pode denotar ambigüidade =>sindicalista e camponês não pertencem ao mesmo campo semântico.

III- Análise do Discurso

1)Para Maingueneau , o discurso é uma maneira de refletir sobre a realidade e essa r já contém o discurso político .

2)Todo discurso pressupõe a construção de uma imagem daqueles que estão envolvidos no processo interativo visão de Maingueneau que se difere da Aristotélica:

Para Aristóteles O orador é simbolizado pelo ethos: a sua credibilidade assenta no seu caráter, na sua honorabilidade, na sua virtude, em suma, na confiança que nele se deposita. O auditório é representado pelo páthos: para convencê-lo é preciso impressioná-lo [...] Resta,enfim, a terceira componente, sem dúvida, mais objetiva: o lógos, o discurso.O ethos, portanto, estaria ligado ao orador, ao seu caráter, à sua virtude, na confiança que ele pode gerar no auditório. O caráter (ou ethos)do orador constituirá ponto importante na persuasão.Segundo ele, há três espécies de provas empregadas pelo orador para persuadir seu auditório, quais sejam: o caráter do orador (o que ele chamou de ethos); as paixões despertadas nos ouvintes (o páthos), e o próprio discurso (o lógos). Assim, o ouvinte se deixa convencer pelas três provas. O páthos é, em Aristóteles, a representação dos sentimentos do próprio auditório. Para convencê-lo é preciso impressionar, seduzir, fundamentar os argumentos na paixão, para que se possa aumentar o poder de persuasão. Dessa forma, o páthos liga-se ao ouvinte, sobre o qual recai a carga afetiva gerada pelo lógos do orador. Este último, por sua vez, sendo o discurso, convence, por si mesmo, pelos argumentos utilizados em situação de comunicação concreta. O lógos pode ser ornamental, literário, argumentativo etc. O tipo de argumento dependerá da situação comunicativa concreta na qual se insere o orador.

Fonte: MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso. (trad. de Freda Indursky). Campinas, SP: Pontes: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 3ª ed. 1997.

Já para a Análise do Discurso, a terminologia ethos diz respeito à construção de uma imagem de si por meio do discurso. Assim, dizer que os participantes do discurso criam uma autoimagem por meio dele, significa também afirmar que o discurso carrega as marcas do enunciador e do co-enunciador, entendidos aqui como aqueles que interagem no processo discursivo. As imagens do enunciador e do co-enunciador agem no campo discursivo, de modo a serem parte constituinte do processo enunciativo. À construção dessa imagem de si no discurso convencionou-se chamar de ethos.



Ethos na visão de Maingueneau

A Análise do Discurso analisa as imagens criadas pelos, tendo como principal expoente nos estudos do ethos Maingueneau (1997), vai retomar o conceito aristotélico de ethos quando afirma que este é a imagem de si no discurso. No entanto, a Análise do Discurso vai além dos estudos elaborados pela Retórica, pois pretende analisar as imagens criadas pelos enunciadores no discurso baseando-se não apenas em situações de eloquência judiciária ou em enunciados orais, mas se estendendo a todo e qualquer discurso, mesmo àqueles presentes no texto escrito. De forma que o ethos representará a relação entre os sujeitos e suas posições discursivas, para Maingueneau não existe um ethos pré-estabelecido, mas construído na instância enunciativa.
A noção de ethos, para ele, permite refletir sobre o processo mais geral da adesão dos sujeitos a uma certa posição discursiva. Retomando a idéia aristotélica de que o ethos é construído na instância do discurso, Maingueneau (1997)afirma que não existe um ethos preestabelecido, mas sim um ethos construído no âmbito da instância enunciativa.

IV- Considerações Finais

Em relação ao ethos de Bové – ele se mostra candidato de suas próprias ideias, sua imagem é fabricada, pois ele não se qualifica pelos campos semânticos que o determinam no discurso. Porém , segundo Mangueneau “ O corpo encarna o que o texto diz”, assim durante sua campanha é esse Bové que vimos.
O texto apresenta 90% de implícitos, pressupor é fazer o outro aceitar o que não aceitaria se fosse explicitado, assim de acordo com essas premissas as pressuposições do discurso de Bové têm esse objetivo, buscar a aceitação dos eleitores.


Conferência Dominique Maingueneau
Professor em Ciências da Linguagem – CEDITEC – Université Paris XII
Membro do Institut Universitaire de France
Discurso eleitoral – fronteiras nebulosas
28 de abril de 2010



Senhora, Senhorita, Senhor,
Eu sou um candidato diferente dos outros.
Sindicalista camponês, militante altermundialista, cidadão engajado, eu não pertenço a nenhum partido político. Milhares de homens e de mulheres, militantes (militan-e-s) ou não, de sensibilidades diversas, me pediram para ser seu candidato.
Eu solicito o sufrágio de vocês como porta-voz de um agrupamento (rassemblement) de milhões de cidadãs e de cidadãos que estão em situação precária e de insegurança social, que contestam um sistema político confiscado por alguns dos grandes partidos e que se inquietam por eles e pelas gerações futuras do futuro do planeta.
Como vocês, eu não creio na alternância sem fim entre direita e esquerda festiva (molle). Vocês têm entre suas mãos uma arma pacífica para dizê-lo: seu voto. Há dois anos as eleitoras e os eleitores se insurgiram contra o projeto da Constituição européia.
No dia 22 de abril, nós teremos ocasião de decretar a insurreição eleitoral contra o liberalismo econômico.
Nós podemos verdadeiramente mudar a vida. Nós podemos impor, aqui e agora, uma verdadeira transformação social, feminista, democrática e ecológica.
Seu voto é útil para derrotar a direita e a extrema-direita que organizam a regressão social e ambiental. Para construir uma esquerda alternativa é necessário que nos unamos para dar fim à sociedade do vale-tudo do mercado e vale-tudo do lucro. Seu voto é preciso para reconstruir a esperança. No dia 22 de abril, vocês podem dizer que um outro futuro é possível.

Às urnas Cidadãos, Cidadãs


JB



Palestra Prof.Dino Preti
Congresso Internacional da Língua Portuguesa
Simone S. Goh


Local : Pontifícia Universidade Católica – PUC/SP 30.4.2010
Tema : Discurso dos grupos restritos – a gíria

Objetivo : Apresentar a gíria como uma variedade linguística criativa de uso em várias esferas sociais.


I-Considerações sobre grupo social :

Conjunto de pessoas que partilham de determinados interesses, pessoas que se afastam pelo inusitado, são marcadas pelo comportamento agressivo e conflituoso com linguagem diferenciada, sendo a gíria utilizada como defesa.


II-Demais premissas :

a-A gíria se incorpora ao vocabulário popular, tornam-se gíria comum;
b-A gíria é efêmera, aproxima os falantes de determinados grupos;
c-Falar diferente, fora do comportamento social indica uma postura crítica.

III-Mecanismos que rejeitam a gíria :

a- Pelo diferente, agressivo;
b- Tentativa de trazer para língua comum ( a escola pune o aluno ao utilizá-la no texto) , o professor não deveria ser contra ou a favor, mas posicioná-la em seu uso.

IV-Considerações sobre determinados termos gíricos :

a-patota( arcaísmo gírio), legal (incluído no vocabulário, almôndega (gíria recente – dançarinos que se amassam).

V-Considerações Finais:

A presença da gíria no dia a dia (inclusive de falantes cultos) demonstra uma menor tendência à tradição e aponta para a valorização da língua falada (língua do povo).